No século passado (XX), a medicina dos horizontes ocidentais se transformou em gigantesco negócio. Por isso, consigno algumas observações pontuais sobre a preocupante mudança do status do médico à medida que a relação entre pacientes e profissionais da saúde deixou de ser pessoal e passou a ser comercial. Em épocas recuadas, na maioria dos casos, o médico era muito mais do que um amigo (era quase membro da família) que conhecia bem o paciente com quem dialogava e dedicava atenção. O juramento de Hipócrates era sacralizado para esses profissionais que prezavam posturas éticas. Porém, lamentavelmente, os tempos mudaram. Atualmente, os médicos, em sua maioria, são mal remunerados, obrigando-os a assumir vários empregos (fazer bicos?...). Justificam que essa foi a principal razão de a relação mais próxima com seus pacientes ter mudado significativamente.
Como se não bastasse, frequentemente, as empresas estão anunciando consórcios ou parcelamentos dos honorários médicos relativos a tratamentos complexos como cirurgias, basicamente, as estéticas. Perplexo, observo a propaganda abusiva anunciada nos panfletos, outdoors, jornais e mídia eletrônica, de empresas, ofertando inúmeros planos de financiamento para cirurgias plásticas. São anúncios do tipo: Promoção: “Redução de abdomem, em 24 vezes de R$ 200,00”. (1) Existem clínicas e profissionais que compram, a peso de ouro, horários em canais de televisão para, simulando reportagens, fazerem merchandising (2) dos tratamentos que prometem verdadeiros "milagres" para os pacientes. Vejo, nesse contexto, que, de fato, a ética foi abandonada e emergiu um panorama típico de deplorável mercantilização da ciência médica. (3)
Por que, hoje, os médicos em geral, seja na academia ou na prática particular, pensam mais nos cifrões do que na saúde do paciente? Os alunos de medicina estão sendo coagidos a uma cultura, cuja técnica-profissional é vista, cada vez mais, como habilidade, unicamente, para fins financeiros. Creio que, se os governos garantissem aos médicos uma remuneração do Estado, a prática dessa ciência seria menos execrável quanto a se verem como homens de negócio.
É óbvio que há exceções, pois há aqueles que ingressam na medicina por estímulos intelectuais, por natural vocação, pelo desejo de desenvolver relações com pacientes, e não para avolumar suas receitas, apenas. Todavia, cresce, cada vez mais, o número de profissionais, tentando vender sua prática ou negociando com os hospitais, empregos, equipamentos ou auxílio financeiro. Sei que inúmeros profissionais da saúde possuem seus próprios equipamentos de exame, e solicitam, desnecessariamente, que mais exames passem por esses aparelhos de finalidades específicas.
O tema é complexo, não resta a menor dúvida, e exige profundas discussões bem fundamentadas e consistentes. Não cabem fórmulas simplistas nem abordagens oportunistas sobre situações pontuais. Para mim, a mais nobre das profissões - a medicina - é recheada de encanto, importância social e apreço. Para que a medicina se faça representar por pessoas dignas dessa profissão, o candidato precisa ter muitas virtudes, ter moral ilibada, ser sábio, tolerante, esforçado, ético, fraterno, incansável, estudioso, dedicado, lógico, honesto, diligente, rápido, benevolente, humano, correto, cortês, compreensível, sensível, desprendido, justo, competente e calmo. Por acaso, conhecemos alguém com essas qualidades todas? O aspirante a médico tem que fazer uma escolha desde muito cedo. Deve ser esculpido para o sacerdócio. Num curso de medicina, recebe-se um conteúdo gigantesco. Nenhum outro curso superior, no Brasil, tem maior carga horária, na graduação, do que o curso de medicina. Terminada essa etapa, o incipiente médico parte para a especialização, que consome, pelo menos, mais 50% do tempo da graduação. Depois de tanta dedicação, é inserido no mercado de trabalho e precisa ser remunerado como qualquer profissional.
Entendo que a conotação sacerdotal, tanto difundida, deve ser entendida como o esforço hercúleo que o médico faz para exercer sua profissão, em condições adversas, como bem sabemos. Não quero condenar a ótica comercial que esta relação de negócios exige nos dias de hoje. Alguns médicos estabelecem seu próprio consultório. Instrumentaliza-o, equipa-o, paga todas as taxas e impostos, enfim, está no mercado de trabalho. Muitos correm atrás de pacientes. Hoje, a primeira porta a bater é a do convênio.
De forma comercial, visando crescer seus ganhos financeiros, negociam valores ínfimos, condições de pagamento, prazos flexíveis, limites de exames complementares, etc.. Diante do paciente sem convênio, é a mesma conversa. Negociam valores, prazos, parcelamentos e, não raro, confunde-se assistência médica com medicina de resultados, aplicando os preceitos contidos no Código de Defesa do Consumidor, alegando-se que a medicina é uma prestação de serviço como outra qualquer.
O médico é um sacerdote da vida, ou um comerciante da saúde? Talvez, nem um, nem outro. O médico deve ser visto como um profissional técnico como outro qualquer, que necessita ser remunerado pelo seu trabalho, pois é dele que sobrevive. Porém, por lidar, diretamente, com a dor, seja ela física, emocional ou psicológica do ser humano, e tantas vezes conseguir livrá-lo do sofrimento, recai sobre o médico a nuance de ser, ele, um sacerdote, um pai, um amigo, um anjo que salva, alivia e traz o bálsamo - situações, essas, incompatíveis com a ‘profana’ contraprestação pecuniária.
Apesar dos pesares, cremos que a prática do médico espírita, pelo menos, deve inspirar-se e se alimentar nos ensinamentos de Jesus. Não deve ser realizada de forma, exclusivamente, mercantilista, ambiciosa, aleatória, mística, fanática, imposta pelo mercado dos tempos modernos (lembro aqui que Bezerra de Menezes receitou, gratuitamente, diversas vezes), porém, dentro de uma obediência às leis naturais, que têm origem nas mesmas fontes dos princípios científicos. A prática do médico espírita, pelo conjunto de fatores que o sustenta, deve ampliar-se, instrumentalizar-se e se cercar de elementos de ordem ética-cristã, sempre. Concluindo, deixo a minha esperança de que o médico espírita consciente (não só médicos, mas advogados, professores, engenheiros, dentistas, etc., etc. e etc.) seja exemplo para a medicina que, lamentavelmente, perde-se nos cipoais do capitalismo explorador e excludente.
Jorge Hessen
Site http://jorgehessen.net
email jorgehessen@gmail.com
Referência:
(1) A Resolução n.º 1.835/08, editada pelo Conselho Federal de Medicina, estabelece ser vedado ao médico ter vínculo de qualquer natureza com empresa que anuncie e/ou comercialize plano de financiamento ou consórcio para procedimento médico, sendo que o exame, diagnóstico, indicação de tratamentos e execução de técnica são de responsabilidade única e intransferível do profissional médico, o qual deve estabelecer os honorários observando o contido no Código de Ética Médica.
(2) Apesar de ser proibido fazer esse tipo de atividade conforme prevê o Código de Defesa do Consumidor
(3) O artigo 9.º, do Código de Ética Médica, determina expressamente que a medicina não pode, em qualquer circunstância ou de qualquer forma, ser exercida como comércio.
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