O famoso “Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz (...)”, início da oração atribuída a Francisco de Assis, é conhecida em quase todo o mundo cristão e traduzida nas mais diversas línguas. Certo dia, ao proferir uma palestra, citei o pensamento franciscano “é dando que se recebe”. Terminada a exposição doutrinária, o dirigente me informou que a “Oração de Francisco de Assis” não fora criada por ele. Fiquei curioso e, por ignorar esse fato, fui compulsar algumas fontes, principalmente o historiador Christian Renoux, doutor em História Moderna e conferencista da Universidade de Angers, na França.
Para muitos, a oração é de autoria de Francisco de Assis; outros a aceitam, simplesmente, sem posicionamento crítico sobre a sua origem. Afirmam, alguns, que, embora não seja de autoria de Francisco, ele a utilizava sempre em suas orações. Porém, se Francisco a tivesse conhecido, ela deveria ter sido transmitida em manuscritos de sua época, e não foi. Até porque, dentre os quatrocentos a quinhentos manuscritos examinados para a edição crítica dos Escritos de Francisco de Assis, a famosa oração não foi encontrada.
Mas, se não é de autoria do filho de Assis, sobram indagações de difíceis respostas: Quem lhe conferiu a condição de ser o autor da “Oração da Paz”, que muitos conhecem como “Oração de São Francisco”? Foi quem a criou ou aquele que a encontrou? Por que o anonimato do autor?
A “Oração da Paz” se expressa com a contraposição entre virtudes e vícios de uma maneira bem semelhante às de Francisco. Mas, das orações de Francisco, nenhuma é feita no estilo da oração que conhecemos. Ela se aproxima, apenas, da forma como foram escritos dois textos filho de Assis: Vejamos: A frase “Onde houver ódio, que eu leve o amor” lembra a “Admoestação 27”: “Onde há caridade e sabedoria, aí não há nem temor nem ignorância. Onde há paciência e humildade, aí não há nem ira nem perturbação. Onde há pobreza com alegria, aí não há nem ganância nem avareza. Onde há quietude e meditação, aí não há nem preocupação nem divagação. Onde há temor do Senhor para guardar seus átrios, aí o inimigo não tem lugar para entrar. Onde há misericórdia e discernimento, aí não há nem superfluidade nem rigidez”.
As demais contraposições ódio/amor, ofensa/perdão, dúvida/fé, desespero/esperança, tristeza/alegria estão ancoradas na pregação de Jesus e na sua prática libertadora. “Pois é dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado; e é morrendo que se vive para a vida eterna” – é, igualmente, fundada nos textos do Evangelho. (1)
Pesquisa histórica realizada, exaustivamente, pelo professor Christian Renoux remonta para o ano de 1912, momento histórico em que ela apareceu, pela primeira vez, em uma pequena revista local da Normandia (2), na França. Vinha sem referência de autor, transcrita de outra revista tão insignificante, que nem deixou sinal da história, pois, em nenhum arquivo da França, foi encontrada. Universalizou-se a partir de sua publicação no Ossevatore Romano, órgão oficioso do Vaticano, no dia 20 de janeiro de 1916. No dia 28 de janeiro, do mesmo ano, foi publicada no conhecido diário católico francês La Croix. Era o tempo da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e, por toda parte, faziam-se orações pela paz.
Pouco tempo depois da publicação da “Oração da Paz”, em Roma, um franciscano, Visitador da Ordem Terceira Secular de Reims, na França, mandou imprimir um cartão, tendo, de um lado, a figura de Francisco de Assis e, do outro, a referida oração, com a indicação da fonte: Souvenir Normand. No final, uma pequena frase, dizia: “essa oração resume os ideais franciscanos e, ao mesmo tempo, representa uma resposta às urgências de nosso tempo.
Renoux demonstra como começou, equivocadamente, a atribuição a São Francisco de Assis. Foi através de um impresso “da imagem de Francisco”, em Reims, na França, logo após a guerra de 1914-18, por iniciativa do capuchinho, Pe. Benoît. Por volta de 1925, a oração começa a ser difundida em ambientes protestantes da França, através do pastor valdense Jules Rambaud, à época, empenhado na reconciliação entre franceses e alemães. Nesse mesmo ano, um oficial protestante alsaciano, Etienne Bach, adota a oração como texto oficial do seu movimento e a publica no Boletim dos Cavaleiros da Paz, difundindo-a, a seguir, por todos os meios possíveis.
Um cartão postal, impresso com o texto da oração, em 1927, a intitula “Oração dos Cavaleiros da Paz”. E são eles, os protestantes franceses, que, em agosto de 1927, pela primeira vez, imprimiram-na com a indicação: “atribuída a São Francisco de Assis”, sem explicar, porém, essa atribuição. Na Inglaterra, a difusão começou entre os anglicanos, que a publicaram, pela primeira vez, em 1936, intitulando-a “A prayer of Saint Francis”. Nos Estados Unidos, o movimento católico dos Cristóforos, fundado em 1945, tomou a oração como sua e a difundiu, largamente, pelos jornais, pelo rádio e, logo, pela TV. Em 1968, o luterano alemão Frieder Schulz publica um longo artigo sobre a história da oração, descartando sua origem franciscana.
Em 1996, nos Estados Unidos, o Pe. Regis Armstrong traduz e publica, na revista franciscana de New York, os artigos já mencionados de Willibrord, Schulz e Poulenc, para desfazer o equívoco da atribuição a São Francisco.
Em síntese, pelo exposto, estou certo de que as edições impressas, as edições críticas, as fontes franciscanas, os estudos modernos sobre Francisco de Assis, etc., remetem-me a uma conclusão, absolutamente, clara: Francisco de Assis não é o autor da “Oração da Paz”, equivocadamente, conhecida como “Oração de São Francisco”.
Jorge Hessen
Notas:
(1) Cf. Lucas Cap. 6 versículo 38 – “daí e vos será dado”
(2) revista devocional francesa La Clochette, editada em Paris, no número de dezembro de 1912. O redator da revista era o Pe. Bouquerel (1855-1923), que a publicou, sem nome de autor e sem atribuí-la a São Francisco
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