"Aprendestes que foi dito: olho por
olho e dente por dente. - Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal que vos
queiram fazer; que se alguém vos bater na face direita, lhe apresenteis também
a outra; - e que se alguém quiser pleitear contra vós, para vos tomar a túnica,
também lhes entregueis o manto; - e que se alguém vos obrigar a caminhar mil
passos com ele, caminheis mais dois mil. - Dai àquele que vos pedir e não repilais
aquele que vos queira tomar emprestado"(1)
Como não resistir, como
fazer ainda mais do que nos exigem os que nos ofendem? O que entendemos por
perdoar? Como perdoar sem permitir que o mal nos envolva, sem nos deixar ficar
sob as instâncias daqueles que nos magoam, que nos prejudicam ou nos ferem?
Essas questões são instigantes. Todavia, o bom senso nos impõe a seguinte
dedução: precisamos compreender e desculpar, ilimitadamente, porque todos nós
necessitamos de compreensão e desculpa nas horas do desacerto, mas urge que
analisemos os fatos para que os diques da tolerância não se rompam, corroídos
pela displicência sistemática, patrocinando a desordem.
Diferentemente do
ensino do Cristo, parece fazer parte do mecanismo instintivo de defesa dos
seres humanos revidar tapas a um agressor. Neste sentido, segundo alguns, dar a
outra face é uma atitude de eficácia duvidosa, contrariando o que Jesus pregou
há mais de dois mil anos. Segundo opiniões de pesquisadores mais centrados no
materialismo, as religiões, antes de Cristo, não apenas amparavam como, também,
incentivavam a vingança desproporcional ao agravo. Os Velhos Textos estão
repletos de passagens do tipo "olho por olho", dizem esses estudiosos.
Argumentam, ainda, que, como instituição, a religião é má conselheira no
assunto tolerância. As guerras religiosas sempre foram, e ainda são as mais
inexplicáveis, as mais duradouras e as mais cruéis da história humana.
Por que carregamos em
nossa intimidade o rancor e o pendor à vingança? Isto pode ser atribuído a
perturbações mentais ou morais, a pais ausentes na infância, a questões
culturais. Para Jeffrie Murphy "a cultura é um fator determinante na frequência
com que os desejos de retaliação se manifestam numa sociedade." Murphy
afirma, ainda, (pasmem!) que a Pátria do Evangelho "aparece em terceiro
lugar nas estatísticas entre as nações nas quais o sentimento de vingança é
mais acentuado, atrás da Bielo-Rússia e da Bélgica". (2) Para alguns estudiosos,
o desejo de vingança é uma parte perfeitamente normal da natureza humana e sua
supressão pode ser, apenas, um daqueles recalques que a vida moderna em
sociedade nos incute. Há quem descubra qualidades no ressentimento. Jeffrie
sugere três (acreditem!): auto respeito, autodefesa e respeito pela ordem
moral. "A pessoa que nunca se ressente, seja de qual for a ofensa, pode
ser um santo. Mas, a falta de ressentimentos pode também revelar uma
personalidade servil e sem respeito por seus direitos e sua condição de indivíduo
livre e moralmente respeitável."(3) Leona Helmsley, uma bilionária
norte-americana, usou o testamento para se vingar da família, que detestava.
Quando desencarnou, destinou a maior parte da fortuna, de cinco bilhões de
dólares, para instituições de caridade (aqui agiu corretamente), porém, também
deixou doze milhões de dólares para seu cãozinho maltês, Trouble. Dois, de seus
quatro netos, receberam quantias equivalentes à metade da legada ao cachorro.
Os demais parentes foram, simplesmente, ignorados. "Eles sabem por
quê", escreveu Leona como clara vingança no testamento. (4)
Perdoar coisas leves,
contra nós mesmos, é relativamente fácil, mas, quando se trata de algo mais
sério, como um assassinato, um estupro, por exemplo, a dificuldade de superação
da mágoa aumenta, consideravelmente. Sabemos que refrear o desejo de vingança
não é fácil quando alguém sente o coração transbordar de fúria. Contudo, não
podemos esquecer que, entre o desejo de vingança e a execução da ação
vingativa, existe espaço suficiente para exercermos o livre-arbítrio, ou seja,
a escolha entre o bem e o mal. A vingança será sempre uma atitude insensata e
inútil, até porque, nenhum benefício trará ao nosso progresso, e uma vez
consumada, terá satisfeito, apenas, à nossa inconformação diante dos
desconhecidos motivos do nosso infortúnio.
O convívio com
criaturas e sistemas imperfeitos, capazes de nos infligir os mais variados
constrangimentos, cerceamentos, limitações, vicissitudes e agressões, constitui
o objetivo moral da reencarnação, de modo que disciplinemos, em definitivo, as ideias
superiores da vida e as incorporemos ao acervo dos valores que já edificamos no
espírito. Nesse sentido, "o perdão é superação do sentimento perturbador
do desforço, das figuras de vingança e de ódio, através da perfeita integração
em si mesmo, sem deixar-se ferir pelas ocorrências afligentes dos
relacionamentos interpessoais". (5) E, mais ainda, pesquisas indicam que o
ato de perdoar pode aplacar a tensão, reduzir a pressão sanguínea e diminuir a
taxa de batimentos cardíacos. Portanto, é uma questão de saúde. O perdão passou
a ser investigado pela medicina. Os vários estudos em andamento seguem a
tendência de analisar a influência das emoções na saúde. Perdoar, imagina-se,
livra o corpo de substâncias que só fazem mal. Essa tese faz parte do livro O
poder do perdão de Luskin.(6)
A intolerância quase
sempre dá lugar à agressividade. As decisões emocionais rebentam rápidas como
torrentes. Sem a participação do bom senso, são capazes de danificar a harmonia
de muita gente. Se nos examinarmos bem, chegamos à conclusão de que sempre
poderemos ser mais tolerantes do que temos sido, habitualmente. Porém, há
coisas que socialmente são intoleráveis, como a violação dos direitos humanos
ou a destruição do planeta, a pedofilia, a corrupção, etc. Muitos
"tolerantes" tíbios, eivados de preguiça e inconsciência, mantêm
atitude de quem não está "para se chatear", porque isso dá trabalho
e, às vezes, até, exige alguma abnegação, mas, isso é covardia! Tolerância não
é indiferença, nem conivência, nem timidez. Pelo contrário, a tolerância
pressupõe entendimento superior, sem orgulho ou vaidade; assenta-se na coragem
esclarecida para beneficiamento de todos, inclusive dos adversários.
Um método corajoso de
perdão foi colocado em prática por Mahatma Gandhi, o Satyagraha (7), isto é,
conquistar o adversário, chamando, para si, o sofrimento, objetivando despertar
a consciência moral daquele que se quer convencer de que o ato que pratica é
impróprio. É um método ousado de perdão, porque implica na tentativa de
sensibilizar o agressor no sentido de reverter seu comportamento. Jesus
aconselhou amar os nossos inimigos no enfoque de não devolver com a mesma moeda
aquilo que nos foi desferido. Oferecer, porém, a outra face (a face do bem),
pois, assim, cortar-se-iam, pela raiz, os sentimentos de vingança.
Diante das agressões
recebidas, o Cristo passava lições grandiosas, como aconteceu com o soldado que
O esbofeteou quando estava de mãos amarradas. Sem perder a serenidade habitual,
o Cristo olhou-o nos olhos e lhe perguntou: "se eu errei, aponta meu erro,
mas se não errei, por que me bates?" (8) Eis, aí, a verdadeira coragem. O
Mestre sofreu a ingratidão daqueles os quais havia ajudado, enfrentou o cinismo
dos agressores, foi ultrajado, caluniado, cuspiram-Lhe no rosto e O
crucificaram, e Ele tomou uma única atitude: a do perdão. (9) Lembrou da
importância de não se colocar limite ao ato de perdoar. "Se vosso irmão
pecou contra vós, ide e falai-lhe sobre a falta em particular, entre vós e ele.
Se vos ouvir, tereis ganhado um irmão." Então, aproximando-se dele, Pedro
disse: "Senhor, quantas vezes perdoarei meu irmão quando ele houver pecado
contra mim? Será até sete vezes?" Jesus lhe respondeu: "Eu não digo
até sete vezes, mas até setenta vezes sete." (10)
"No Cristianismo
encontram-se todas as verdades; são de origem humana os erros que nele se
enraizaram". (11) Jesus não quis dizer para deixarmos de reprimir o mal,
mas para não pagar o mal com outro mal. Perdão é o pagamento do mal com o Bem...
O perdão nivela os homens pelo que neles há de melhor, libertando quem perdoou
dos maus sentimentos que o escravizavam a quem o feriu.
Mal por mal significa o
eclipse absoluto da razão. "Por mais aflitiva seja a lembrança do
adversário, recordemo-lo em nossas preces e nas meditações, por irmão
necessitado de nossa assistência fraterna. Ainda não readquirimos nossa memória
integral do passado e nem sabemos o que nos ocorrerá no futuro". (12) Que
seria da Humanidade se não existisse a paciência e a tolerância do Criador para
com as criaturas imperfeitas e rebeldes que somos? Perdoar é um ato
inteligente, que nos liberta de outras ansiedades e perturbações que nem
precisamos enfrentar. Então! Para quê guardar mágoa?
Jorge Hessen
jorgehessen@gmail.com
http://jorgehessen.net
Notas e referências bibliográficas:
1-
Cf. Mateus, cap. V, vv. 38 a 42
2-
Jeffrie Murphy, autor do livro Acertando as Contas: o Perdão e Seus Limites,
disponível acesso em 16-01-09.
3-
Idem
4-
Disponível no site http://veja.abril.com.br/030908/p_086.shtml
, acesso em 15-01-09
5-
Franco Divaldo Pereira. À Luz da Psicologia Profunda , ditado pelo Espírito
Joanna de Angelis, Salvador: Editora: LEAL, 2001
6-
Luskin Frederic. O poder do perdão, São Paulo: editora: Novo Paradigma, 2002
7-
Termo cunhado pelo pacifista indiano Mahatma Gandhi em sua campanha pela
independência da Índia. Significa o princípio da não-agressão, ou uma forma
não-violenta de protesto, como um meio de revolução.
8-
Franco Divaldo Pereira. Palavras de Luz, Sob a inspiração de diversos
espíritos, Salvador: Ed. FEEB, 1993
9-
Romanelli Rubens Costa. Primado do Espírito, BH: Ed. Síntese, 1966, Cap. 15
10-
Cf. Mateus, XVIII: V, vv. 15, 21 e 22.
11-
Kardec Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo, RJ: Ed FEB, 2003, cap. VI,
item 5, 118.
12-
Xavier Francisco Cândido, Nos Domínios da Mediunidade, ditado pelo Espírito
André Luiz, RJ: Ed. FEB, 2001
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